No que tange ao cinema em geral, "Rush" pode ser considerado uma forte indicação ao Oscar, tanto pelo roteiro, fotografia, trilha sonora, as sequências de cenas, a plasticidade dos acidentes gerados por computador combinada com o uso de imagens da época, o que, graças ao formato de imagem geral da película adotado, fazendo-o parecer que foi produzido na época, torna essa troca entre imagens viruais e reais quase imperceptível.
AVISO: este texto contém spoilers.
Isso sem contar a atuação dos atores, que foram escolhidos a dedo para que fossem o máximo possível parecidos com a fisionomia dos pilotos. Pierfrancesco Favino ficou tão parecido com Clay Regazzoni que, sempre que ele aparecia, eu pensava que ele era o próprio piloto que fazia seu papel. Christian McKay foi brilhante ao interpretar o excêntrico Alexander Hesketh.
Mas o grande nome do filme é Daniel Brühl, que roubou a cena, interpretando Niki Lauda de maneira magistral, encarnando o metodismo, a frieza, o calculismo e o sotaque alemão típicos do piloto austríaco, que lutou contra a morte em 1976, e quase conquistou o título daquele ano.
Para quem não acompanha corridas de carros ou veículos de qualquer espécie, mas gosta de dramas que envolvem rivalidades, brigas, sexo, relacionamentos e histórias de vida de pessoas, "Rush" é um filme para ser assistido por essas pessoas enquanto comem pipoca.
Já para quem conhece a história da Fórmula 1, ou quer saber mais sobre o enfrentamento entre James Hunt e Niki Lauda, fica muito confuso e na dúvida se cada fato que foi mostrado no filme realmente aconteceu ou foi criado por Ron Howard, já que a produção foi baseada numa história real, não é uma biografia, daí, obtém-se uma "licença hollywoodiana" para o diretor fazer o que desejar.
Mesmo sendo fiel à história real da disputa entre James Hunt e Niki Lauda na temporada de 1976, Ron Howard fez algumas adaptações. Neste processo, alguns fatos foram suprimidos e outros foram superestimados no filme.
O filme começa com a formação do grid para o Grande Prêmio da Alemanha de 1976, mas o procedimento de largada é interrompido para mostrar a trajetória de ambos para chegar até ali. Volta-se para 1970, a Daily Express Trophy Race, corrida de Fórmula 3 no circuito de Crystal Palace.
O incidente na disputa pela segunda posição, que envolveu dois carros, um deles pilotado por James Hunt, aconteceu na vida real, mas o outro piloto não era Niki Lauda, mas sim Dave Morgan, que, após julgamento, foi considerado culpado pelo acontecido e condenado a doze meses de suspensão de sua licença para competir.
A ida de James Hunt à McLaren, no filme, aconteceu devido à falência da Hesketh. Na verdade, a equipe continuou até 1979, mas sem o excêntrico Thomas Alexander Fermor-Hesketh (Lord Hesketh), que, ao competir sem patrocínio, acabou se endividando. O austríaco Harald Ertl, que bateu no carro do compatriota Niki Lauda após o acidente em Nürburgring, pilotava um carro da Hesketh.
A cena em que Niki Lauda e Marlene, que se tornaria sua esposa, ficam empenhados na estrada, após o carro pifar, e dois fãs da Ferrari, ao passarem pelo local, reconhecerem o recém-contratado pela Scuderia, e oferecerem o Alfa Romeo que estavam conduzindo para Niki acelerar e fazer a alegria de todos, tem sua autenticidade posta em dúvida por mim, mesmo com Ron Howard produzindo o filme com relatos do próprio Lauda.
A vitória de James Hunt no Grande Prêmio da Espanha, anulada por irregularidades em seu carro e reconsiderada dois meses depois, não foi a única interferência política que aconteceu naquele ano. No GP da Inglaterra, o piloto da casa trocou de carro após um acidente na primeira largada, que envolveu também Clay Regazzoni e Jacques Laffite.
Com o carro severamente avariado, Hunt voltou à corrida com o carro reserva e cruzou a linha de chegada em primeiro lugar. No entanto, após protestos das equipes Ferrari, Tyrrell e Fittipaldi, o piloto teve sua vitória anulada meses depois. Este fato não é retratado no filme.
Outro fato forçado foi a discussão entre Hunt e Lauda durante o briefing entre os pilotos e a FIA, antes do GP da Alemanha que resultou no acidente do austríaco. Testemunhas, como o piloto Emerson Fittipaldi, disseram que James e Niki apenas conversaram, sem haver um confronto de ideias. A rivalidade existia nas pistas, e apenas nas pistas. Fora das corridas, sem os capacetes e as balaclavas, eram amigos. A tensão entre ambos, retratada no filme, "é coisa de Hollywood mesmo", disse o piloto brasileiro.
Outra cena que me deixou na dúvida se o fato realmente aconteceu ou não foi a agressão de James Hunt ao repórter que fez uma pergunta indiscreta a Niki Lauda, na primeira entrevista coletiva após a sua volta às pistas, logo após a saída do hospital.
No entanto, várias cenas que os leigos no automobilismo possam achar que foi invenção do diretor, como a recusa de Niki Lauda em conceder um autógrafo em Nurburgring, e a visita de um padre à UTI onde o austríaco estava internado para lhe dar a extrema-unção, são fatos verídicos.
Um dos acontecimentos mais conhecidos da vida agitada e desregrada de James Hunt aconteceu nas semanas que antecederam o GP do Japão, último da temporada. Hospedado em um hotel de Tóquio, com seu grande amigo Barry Sheene, campeão mundial de motovelocidade em 1976, na categoria 500cc, a maior da época, James consumiu álcool, cigarros e maconha, e transou com nada menos que 33 aeromoças. No filme, o ator Chris Hemsworth acorda no meio de "apenas" duas mulheres.
Niki Lauda, mesmo após tanta dificuldade para retornar à competição, abondonou a prova e abdicou da disputa pelo título da temporada, mas não por causa de Marlene, com quem se casara no mesmo ano e estava em lua de mel, como foi retratado no filme. Os detalhes técnicos, acontecimentos esportivos e intrigas políticas da temporada de 1976 contribuíram para o vice-campeonato. O austríaco, em virtude das queimaduras na face, sequer podia piscar os olhos naquela chuva. No entanto, o espectador que não conhece a história pode concluir que Niki Lauda perdeu o Mundial de Fórmula 1 daquele ano por amor.
Além do mais, o filme abre um precedente perigoso. Os cinéfilos que não curtem automobilismo ou não conhecem a história da temporada de 1976 da Fórmula 1 podem considerar o mulherengo, carismático e despreocupado com o futuro James Hunt o mocinho da história, e o metódico, calculista, concentrado apenas em trabalhar para se tornar o melhor piloto de sua época, disciplinado, estudioso e obstinado Niki Lauda como o vilão do filme. Isso pode ser reforçado pela atuação de Daniel Brühl, que faz com que o austríaco pareça um prepotente enquanto conversa com James Hunt, interpretado por Chris Hemsworth.
Isto faz com que, tanto no filme como na vida real, as pessoas cheguem à conclusão de que James Hunt só foi campeão por conta do que aconteceu com Niki Lauda, e que, por causa de sua vida desregrada, conseguiu o título por acidente, estereótipo que perseguiu o piloto inglês até sua morte, em 1993, aos 45 anos. O personagem de Chris Hemsworth no filme só reforça a ideia, apesar de James Hunt ter vencido seis Grandes Prêmios no ano de 1976.
"Rush", apesar de baseado em uma história real, é um filme de entretenimento. A película produzida por Ron Howard consegue ser menos real que "Grand Prix", de 1966, dirigido por John Frankenheimer, construído com imagens geradas na temporada daquele ano, mas com personagens fictícios, embora fortemente inspirados em pilotos reais. O roteiro filmado por Frankenheimer é mera ficção, mas contribui mais para entender a Fórmula 1 dos anos 1960 do que o roteiro de Howard faz com o campeonato de 1976.
Além disso, o final de "Rush" mostra imagens de James Hunt colhendo os frutos da conquista de seu título da Fórmula 1, como as aparições em programas de televisão, a participação em propagandas da Texaco (veja-as aqui, aqui e aqui), a parceria com Murray Walker no programa "Grand Prix", da BBC, até sofrer um ataque cardíaco fulminante e morrer, aos 45 anos. O que Ron Howard quis mostrar é que Niki Lauda, ao conquistar mais dois títulos e estar vivo até hoje, perdeu a batalha, mas venceu a guerra.
P.S.: Exatamente, coloquei o pôster da versão portuguesa do filme. Achei "duelo de rivais" muito melhor que "no limite da emoção".
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